A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) declarou nesta
quinta-feira (26) considerar "desumana" e "retrocesso" a portaria do
Ministério do Trabalho que alterava os critérios de combate ao trabalho escravo. A entidade disse reconhecer a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu em caráter liminar (provisório) a medida na última terça (24).
"Tal iniciativa elimina proteções legais contra o trabalho escravo
arduamente conquistadas, restringindo-o apenas ao trabalho forçado com o
cerceamento da liberdade de ir e vir. Permite, além disso, a jornada
exaustiva e condições degradantes, prejudicando assim a fiscalização,
autuação, penalização e erradicação da escravidão por parte do Estado
Brasileiro", diz em nota a presidência da entidade.
Em nota durante coletiva, lida pelo bispo auxiliar de Brasília e
secretário-geral da CNBB, Dom Leonardo Ulrich Steiner, a entidade diz
que "não podemos fechar os olhos" diante do trabalho escravo.
"O trabalho escravo é hoje uma moeda corrente que coloca o capital acima da pessoa humana, buscando o lucro sem limite."
Também durante a coletiva, a entidade divulgou nota sobre o atual
momento político. "A barganha na liberação de emendas parlamentares pelo
governo é uma fronta aos brasileiros. A retirada de indispensáveis
recursos da saúde, da educação, dos programas sociais consolidades, do
Sistema Único de Assistência Social (SUAS), do Programa de Cisternas no
Nordeste, aprofunda o drama da pobreza de milhões de pessoas."
"O divórcio entre o mundo político e a sociedade brasileira é grave."
Portaria
O governo federal anunciou em 16 de outubro mudança nas regras para o
combate ao trabalho escravo. A norma determinava, entre outras
novidades, que, para configurar a ocorrência de escravidão, seria
preciso comprovar que o trabalhador era impedido de se deslocar e que
havia segurança armada no local para vigiá-lo.
Além disso, os conceitos de "trabalho forçado", "jornada exaustiva" e
"condições análogas à de escravo" foram alterados para fins de concessão
e seguro desemprego. Por fim, a divulgação do nome de empregadores que
sujeitam trabalhadores a essas condições – a chamada “lista suja” –
passaria a ser feita pelo próprio ministro do Trabalho e não mais pelo
corpo técnico do ministério.
Reações
A legalidade da portaria foi questionada pelo Ministério Público
Federal e pelo Ministério Público do Trabalho, que solicitaram ao
ministro do Trabalho que revogasse o ato por vício de ilegalidade. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) manifestou "preocupação".
"O Brasil, a partir de hoje, deixa de ser referência no combate à
escravidão que estava sendo na comunidade internacional", disse Antônio
Rosa, representante da OIT em Brasília.
Também em reação às mudanças, auditores-fiscais do trabalho cruzaram os
braços em 20 estados e o Distrito Federal. O secretário de inspeção do
trabalho substituto, João Paulo Ferreira Machado, divulgou memorando
informando que não teve ciência sobre a publicação da portaria nem
participou de qualquer estudo a ela relacionado.
De acordo com o documento, foram constatados “vícios técnicos e
jurídicos na conceituação e regulação do tema”, bem como aspectos que
atentam contra a Constituição, a Convenção 81 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e o Código Penal. Diante disso, disse
que pediria a revogação da portaria.
O memorando orienta ainda os auditores-fiscais a manterem as práticas
de fiscalização no combate ao trabalho escravo de acordo com os
normativos vigentes, como a Instrução Normativa n° 91, de 5 de outubro
de 2011, e a Portaria Interministerial n° 04/2016.
A Lei Áurea foi promulgada em 13 de maio de 1888 – há 129 anos. Desde
1940, o Código Penal brasileiro prevê a tipificação do trabalho
degradante. Em 2014, o Congresso Nacional promulgou a PEC do Trabalho
Escravo, que permite a expropriação de imóveis onde forem flagrados
trabalhadores em situação análoga à escravidão.
Trabalho escravo na Justiça
Um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça aponta que o
tempo médio de tramitação de um processo judicial relacionado a trabalho
escravo é de cerca de três anos e meio. O cálculo considerou o tempo
entre o recebimento da ação e o final de 2016 – quando havia 253
análises pendentes. Especialistas afirmam que esse prazo "não é
razoável".
Como a exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão é
crime federal, a análise costuma ser feita pela Justiça Federal. Em
alguns casos, porém, os processos podem ingressar nos tribunais
estaduais por causa de autuações feitas pelas polícias civis. Nestes
casos, o tempo sobe para 4,3 anos.
O levantamento considera todos os tribunais regionais – com exceção dos
do Distrito Federal, São Paulo e Rio Grande do Norte – e os regionais
da 2ª Região (Espírito Santo e Rio de Janeiro), da 4ª região (Santa
Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná) e da 5ª Região (Alagoas, Ceará,
Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe). Ações que
tramitaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ) também fazem parte do
levantamento.
De acordo com o CNJ, em todos esses estados houve constatação de
situações análogas ao trabalho escravo. O órgão não soube dizer ao G1 de
quando é o processo mais antigo analisado.
“Em 2015 e 2016, ingressaram 138 casos novos sobre trabalho escravo e foram baixados 110”, completou.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do
Brasil no DF, Daniel Muniz diz considerar alto o prazo de três anos e
meio para uma resposta. Ele diz que a decisão é importante para que a
vítima verifique que houve punição para algo que violou a dignidade
dela.
“O prazo não é razoável diante da gravidade dos fatos apurados e da
ausência de punição célere pelo Estado com o intuito de coibir tais
práticas respeitando a Constituição e os tratados internacionais."
Compromisso internacional
Em 1957, o Brasil ratificou a Convenção n. 29/1930 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e, com isso, assumiu internacionalmente o
compromisso de enfrentar o trabalho escravo. No mesmo ano, a OIT
aprovou a Convenção n. 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado,
ratificada pelo Brasil em 1965.
Somente 38 anos depois, o Brasil editou novas normas sobre o tema. A
Lei n. 10.803/2003 atualizou a tipificação do crime, introduziu as
expressões “condições degradantes” e “jornada exaustiva” e estabeleceu
penas de reclusão, que variam de dois a oito anos.
Na sequência, por meio do Decreto n. 5017/2004, o Brasil ratificou e
promulgou o Protocolo de Palermo. Em 2016, a Lei n. 13.344 atualizou a
legislação que trata de diversas formas de exploração, entre elas a
remoção de órgãos, a adoção ilegal, o trabalho escravo e a servidão.
G1.com
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